Francisco Mendes é um freguês da Estrela que viveu experiências únicas, mas próprias da época, durante a sua juventude. É um amante do Jardim da Burra, sendo o seu local favorito para conviver. As suas vivências do antigamente – guerra, revolução e solidariedade - moldaram-no para a pessoa que é hoje.
Fique a conhecer o Sr. Francisco Mendes, que aos 90 anos nos conta as suas memórias.
Freguesia de Estrela (JFE): O Sr. Francisco é jovem para que idade?
Francisco Mendes (FM): Quantos me dá?
JFE: 79?
FM: Ui! Onde isso já vai! Nessa idade, era um vadio de primeira apanha! Tenho 90, feitos!
JFE: Está rijo! E vive aqui, na Estrela, desde quando?
FM: Eu vim para a Estrela tinha uns 4 ou 5 anos. Naquela época era assim: as famílias tinham muitos filhos e nós íamos para a casa dos avós para ajudar. E eu vim para casa da minha avó, que morava aqui na Travessa da Oliveira e o outro meu irmão foi para casa da outra minha avó, que morava na Rua de São Bernardo. E era assim, ajudavam-se uns aos outros.
JFE: O que se lembra, dessa época, com maior carinho?
FM: O mais bonito, naquela época, era as pessoas acarinharem as crianças. Havia muita pobreza e miséria, os pobres a arrastarem-se pelo chão em cima dum pneu, a pedir; e nós tínhamos a caridade e o instinto de ajudar um velhinho ou um ceguinho a atravessar a rua, porque o ceguinho tocava música e o acompanhante cantava o fado, as pessoas vinham para a varanda; e eram os meninos e as meninas que vinham à rua entregar-lhes uma moeda de um tostão ou meio tostão. Havia essa coisa, de carinho entre as pessoas. Mas havia especialmente essa coisa de ensinar as crianças a fazer os recados, a portarem-se bem… Hoje, é tudo pontapé, meia-bola e força. Vê alguma criança a fazer recados e a ir comprar 250 gr de feijão ou de arroz ou um quilo de carvão? No meu tempo de garoto só tínhamos brincadeira em casa dos meus avós, porque em casa dos meus pais não tínhamos nada, era contar piolhos, pulgas e apanhar percevejos. Naquela época, os colchões eram de palha. Hoje, por exemplo, ninguém vai à mercearia comprar fiado e pagar ao fim da semana quando vem a féria - que era o ordenado do marido. Eu gosto muito deste tempo, porque, olhando para trás, eu e outros putos andávamos aqui no Jardim da Estrela a apanhar alfarrobas, as ginjinhas e bolotas para comer.
JFE: Acha que a Estrela tem uma alma própria?
FM: Sim, não sei se pelo jardim ou pela Basílica, mas tem. O Jardim não era o que é hoje. Todos os domingos havia música, com a banda da GNR ou a do Exército ou a Mocidade Portuguesa.
JFE: Hoje em dia, vai mais para o Jardim da Burra do que aqui para a Estrela?
FM: Sim. No Jardim da Estrela, tenho muita gente amiga, mas estou mais sossegado no Jardim da Burra, gosto de estar com aquela malta.
JFE: Em que momento deu conta que já era um adulto?
FM: Estava eu na tropa, na Artilharia 1, e namorava uma rapariga, que morreu num acidente de elétrico. Estávamos todos a falar à porta e os pobres iam à porta, com uma lata ou uma panela, buscar os restos que a gente deixava na terrina ou nos pratos. E o meu pai gostava de falar nos comunistas, que era uma palavra bonita, que eu gostava. No quartel, ouvíamos falar bem dos comunistas e eu comecei a repetir “Os comunistas é que são bons, porque dão casa e trabalho”. O que eu fui dizer! Daí a uma hora, fui preso para o calabouço. Chamaram-me e disseram-me “Cuidado, que isso não se diz!”. E eu fiquei revoltado. E depois fui para a Trafaria e fiquei lá preso um mês. Mas eu namorava e, numa ocasião, eu estava no muro, virado para a estrada que vai para Lisboa e a rapariga - que trabalhava no laboratório Sanitas - passava pelo muro para eu a ver. E um dia, eu pus a arma lá escondida e saí pelo portão. Quando entrei, disse que me tinha sentido mal e trouxeram-me para o Hospital Militar, aqui na Estrela. O meu pai morreu no Hospital do Desterro, e foi operado por um médico chamado Capitão Vasconcelos Dias. E quando vim para aqui, fizeram-me um exame com um tubo na garganta e eu disse quem tinha operado o meu pai. E quando pensava que ia levar uma porrada, deram-me 15 dias de descanso em casa! E nunca mais me endireitei. E foi aí que comecei a sentir-me adulto e responsável pelas minhas opções. E a ser revolucionário. E nunca mais parei! Mas também não me lembro de fazer mal a quem quer que fosse.
JFE: Há alguma coisa que, se pudesse, teria feito de forma diferente?
FM: Naquela época não havia grandes inteligências. Ora, quando eu cheguei à tropa, não tinha pai nem mãe; já tinha andado aqui e acolá. Tive no asilo Nun’Álvares. Avé Marias e Padres Nossos, à esquerda e à direita. Castigos virado para a parede, torturas… Que era a época, não só nessas instituições, mas até pelos próprios pais. Uma menina com 5 anos já ia fazer recados. Então, as escolhas corriam como corriam e tanto podia ir para pedreiro como para outra coisa qualquer. Fui para a Trafaria, fui preso… Ali no quartel, naquela época, jogava-se à bola. E ali, eu conheci o guarda-redes do Sporting, o Carlos Gomes. E foi ali que ouvi falar em ir trabalhar para França ou para outros sítios. E eu fui à balda por aí: atravessei a fronteira, dei 3 escudos a um pastor e cheguei a Espanha a zeros. Veio a Polícia ter comigo e eu disse que queria ir matar mouros, que foi o que me ensinaram. Levaram-me para a Legião Estrangeira e passaram-me para Marrocos. E foi lá que me lembrei do Carlos Gomes e fui por aí fora, mas já não o encontrei. Em Tânger, tive árabes bons, que me ensinaram e me fizeram…
JFE: E queria o senhor matar mouros…
FM: Não, apenas assim o espanhol não me mandou para trás! Então, eu estava na Legião e estava lá um brigadeiro que era do Porto; e um tenente que também era do Norte, e eles ajudaram-me e davam-se instruções. Um dia chaguei tarde e bêbado e fui para o calabouço 8 dias. E no calabouço estavam mais uns 10 e tínhamos que ir limpar o terreno e fazer limpezas. E eles ensinaram-me: “Quando receberes o ordenado, atravessas a fronteira, vais ali e compras umas calças e deixas lá a farda”. E então comecei a inventar marroquino. E aprendi a palavra ‘Pobrezinho’ na língua deles e eles davam-me água, bocados de pão… Ajudei muitos portugueses por lá e muitos comeram em minha casa. Depois uns marroquinos arranjaram-me trabalho: ia com um burro levar comida àqueles que andavam a ceifar. E foi mais tarde que um marroquino me levou à camioneta e deu-me dinheiro, para ir ter com o Carlos Gomes.
JFE: Acha que o tempo, hoje em dia, leva mais tempo a passar?
FM: Não. Hoje, o tempo passa rápido. Em Lisboa, por exemplo, antes o jornal ia a casa, o leiteiro ia a casa, a hortaliça e fruta iam a casa, o padeiro ia a casa e os miúdos entreviam-se a fazer qualquer coisa. Dantes sobrava tempo para tudo e mais alguma coisa. As mães diziam “Põe-te aí na varanda e, quando passar a peixeira, chama a mãe!”. Havia a fruta da época e havia muito tempo. Hoje, o senhor vai a correr para apanhar o autocarro, para pagar a renda, para ir à mercearia, passa a vida a correr para tudo. Hoje, nada vai a casa. Vai o correio e não sobe lá acima, como era antes.
JFE: Como passa o tempo, no dia a dia?
FM: A passear. Vou ali, vou acolá. Esta tarde vou ao Jardim Botânico. Agora já começa a aparecer gente. E vou lá para conversar com a gente mais antiga, das memórias. A de hoje não me interessa tanto. Os jornais não falam de gente de jeito. Hoje, se um pobre partir um vidro passa horas na esquadra e gasta-se resmas de papel. Um rico, rouba milhões e não lhe acontece nada. Paga-se milhões por um jogador de futebol, um gajo para dar pontapés na bola. No nosso tempo, os jogadores da bola, do Benfica, do Sporting e do Porto, acabavam o jogo e iam todos beber um copo…
JFE: Houve alguma frase que lhe tenham dito na vida, que nunca mais esqueceu?
FM: O General Humberto Delgado: “Ó Chico, gostava de ter mais gente como você!”, numa reunião, em Marrocos.
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A Comunidade é a maior riqueza da Freguesia de Estrela. É bom viver na Estrela!