A Comunidade é a maior riqueza da Freguesia de Estrela. São as pessoas que fazem o nosso bairro. Como tal, a Junta de Freguesia irá lançar diversas entrevistas a fregueses que contribuem diariamente para um bairro melhor, que vivem o nosso bairro e que, principalmente, fazem da Estrela o que ela atualmente é: uma casa para tantas pessoas.
A Ana Massena é médica de profissão, mas todos os dias faz do mundo mais doce com a sua loja de arroz-doce na Rua do Patrocínio. Conheça esta médica, que guarda um pouco do seu dia para ajudar o próximo, tendo colaborado com o SOS Estrela.
Freguesia de Estrela (JFE): Não vive na Estrela, mas tem ligações a esta freguesia.
Dra. Ana Massena (AM): Pelo negócio, mas também porque os meus sobrinhos andam aqui na escola. Também cheguei a trabalhar na Unidade de Cuidados Continuados do Hospital Militar. Portanto é uma zona que eu gosto muito. É muito agradável e é uma zona que tem algum espírito de comunidade, que é algo que se perdeu muito em Portugal, nas grandes cidades, nos últimos anos. Acho que a Estrela é dos poucos sítios em que se percebe que há espírito interventivo e onde há uma preocupação visível em melhorar o nível de vida das pessoas. Por isso mesmo, dá uma certa sensação de aconchego e de participação, na vida dos outros e da comunidade: temos a sensação de ser mais do que um número de cartão de eleitor.
JFE: É como se fosse viver numa vila, mas no centro de Lisboa.
AM: Exatamente. Temos a noção que podemos a fazer a diferença e que a nossa voz é ouvida; e que as pessoas querem ouvir o que temos para dizer. Há uma intervenção efetiva e que funciona.
JFE: Enquanto médica, tem 2 especialidades que não se pode dizer que sejam das mais fáceis, do ponto de vista da interação humana.
AM: Sim, fiz a especialidade em Oncologia Médica e, ao mesmo tempo, fiz o Mestrado em Cuidados Paliativos. E, há pouco tempo e devido às minhas doentes, resolvi tirar uma pós-graduação em Medicina Estética, especialmente dedicadas às doentes oncológicas.
JFE: E mesmo assim, no meio de tanta coisa, ainda tem tempo para abrir e gerir um negócio de arroz-doce aqui na Estrela [Sweet’n’Rice]. Porquê na Estrela?
AM: Acho que por isso mesmo: pela parte humana. É sempre a parte humana que me move.
JFE: É uma forma de contribuir para o bairro?
AM: Sim. Todos nós temos de ter os nossos drives e acabamos por procurar as situações antes delas nos procurarem a nós. Aqui, é o espírito de colaboração que existe e de bairro, que me atrai. As pessoas conhecem-se e comunicam e estão umas com as outras. Há ligação, que é uma coisa que, nesta época e neste sítio, neste país e neste mundo, é cada mais difícil de estabelecer.
JFE: E vende principalmente arroz-doce. Mas não só…
AM: A base é arroz-doce. É a parte doce da vida. O resto é aquele pequeno requinte que todos nós gostamos de ter e que eu também gosto de oferecer aos outros. Gostamos de compartilhar e desse espírito latino, que estamos a perder, que é o convívio. Por isso mesmo, tentei sempre que os preços não fossem muito elevados, para que toda a gente possa usufruir, sem verem isso como um desperdício ou algo fora do comum; e o convívio ser visto como algo normal na rotina das pessoas. Todos precisamos ter hábitos de vida que nos deem prazer. Falo por experiência própria: a vida é tão, mas tão curta, que ter prazeres é uma obrigação.
JFE: Para quem trabalha, por vocação, com oncologia, o arroz-doce traz-lhe mesmo esse lado mais doce à vida, na medida em que lhe permite estar com pessoas sem ser numa situação de dor?
AM: Traz, porque aqui podemos ver as pessoas, pelo menos, descontraídas.
JFE: Pelo menos, ao nível da saúde.
AM: Sim, da saúde. E até temos um centro de saúde mesmo aqui ao lado. A verdade é que quando vi esta loja não fazia a mínima ideia que havia aqui mesmo ao lado um centro de saúde.
JFE: A Ana ofereceu ajuda à Junta de Freguesia de Estrela, no início desta pandemia; e ajuda muito a comunidade. De que forma se revela essa ajuda?
AM: No início da pandemia, não estava a ‘fazer Covid’: estava a ver unicamente doentes oncológicos, porque nós nunca paramos. E então, na altura, disse à Junta que estava disponível. Eu sabia que esta freguesia tem imensos idosos e sabia que os médicos de família iam parar; e sabia que havia muitas pessoas em casa… E, na altura, perguntei à Junta se precisavam que eu visse alguém? Lembrei-me que uma responsável da junta me tinha dito que havia muitos idosos, com dificuldade de locomoção e de acesso aos serviços de saúde. E imaginei que isto viesse a causar um aglomerado enorme de receitas por passar coisas do género. E são pessoas que precisam das coisas, que sempre precisaram. E dispus-me a passar as receitas que fossem necessárias e a ver quem fosse preciso. A minha posição continua a ser a mesma. Eu trabalho por vocação e não por dinheiro. Não sou capaz de virar costas a um sítio onde eu possa ser necessária. Posso não ser tão útil quanto gostaria, por vezes, mas eu estudei para isto e devo estar disponível para quem precisar.
JFE: Como passou estes meses de pandemia, alguém que não conhece a palavra ‘parar’?
AM: Eu só estranhava sair à rua e não ver ninguém. Foi a única coisa. De resto, acabei por sentir a pandemia, não a sentindo muito, porque as doenças e os doentes oncológicos não pararam. Não podíamos deixar de assistir e nunca fechamos. Portanto, o meu dia-a-dia foi quase normal. A única diferença foi, quando saia, não ver ninguém e não poder ir a uma esplanada, que eu adoro. Portanto, foi mais a pandemia que passou por mim, do que eu por ela. Até porque, dado o elevado risco de infeção dos doentes oncológicos, não nos era permitido contactar com doentes infetados com COVID-19 nem com Urgências, pelo elevado risco que isso comportava. Mas, entretanto, a situação piorou tanto, que acabamos mesmo por ser convocados para isso. E fi-lo quase um mês e tal.
JFE: Quem está cá fora não tem bem a noção da agonia real que se vive lá dentro, pois não?
AM: Sim. Toda a gente falava no aglomerado de ambulâncias à porta do Santa Maria. Isso, na verdade, não me assustava. Porque as pessoas que estavam lá eram vistas. A mim assustavam-me mais era as pessoas que estavam lá dentro e que nós não tínhamos capacidade para lhes dar resposta. E que tanto estavam bem, como de repente já não estavam.
JFE: Os doentes COVID-19?
AM: Sim. As outras urgências quase pararam. As pessoas estavam tão amedrontadas e também não houve informação eficaz, para esclarecer que as urgências COVID-19 eram separadas das urgências gerais. Portanto, a maior parte das pessoas evitaram ir. E ainda continuamos a ter repercussões disso, com doentes oncológicos que nos chegam agora, já numa fase quase terminal, por não ter havido diagnóstico no momento ideal. Doentes crónicos, cardíacos, idosos, completamente descompensado em termos de medicação…
JFE: Para quem trabalha com Cuidados Paliativos, uma doença que se manifesta tão rapidamente, deve ser complicada de gerir?
AM: É complicado até para nós próprios, que também temos que encaixar na nossa cabeça, essa nova realidade, para depois conseguirmos lidar e dar o nosso melhor a quem precisa de nós. E não houve esse tempo, nem do nosso lado, nem do paciente. Foi dramático e com uma sensação de abandono por parte do Sistema de Saúde. E como não houve essa informação, acabou por se transformar numa bola de neve ainda maior que o efeito direto do próprio COVID-19. O COVID-19 levou atrás de si imensa coisa, que se vai manifestando agora, aos poucos.
JFE: Numa altura em que há tanta oferta de workshops, cursos, sessões ou retiros para potenciar o Crescimento Pessoal; e, numa via paralela, em que vivemos esta pandemia e em que o mundo…
AM: Crescimento Pessoal? Acha que o crescimento pessoal se ensina? E é nos workshops? Acho muito bom as pessoas pensarem que têm de crescer pessoalmente. Mas o crescimento pessoal não se ensina.
JFE: Mas há esta preocupação generalizada e crescente: nunca se viu tanta gente preocupada, pelo menos, com este termo…
AM: Pois. Não sei é se isso é uma coisa completamente genuína ou se traduz 2 gavetas que as pessoas têm na cabeça: numa o comportamento pessoal que aprende e noutra o comportamento pessoal que tem com os outros. Devia ser tudo a mesma gaveta. Mas acho que se tornou uma moda. Esta história da espiritualidade e de tudo o que a envolve, acaba, infelizmente, por ser mais uma moda que não se revê nas ações. Na verdade, eu acho que o Crescimento Pessoal, esse de que fala, é acima de tudo mais uma forma de egocentrismo. Por outras palavras, é mais uma forma das pessoas dizerem a si próprias: “Eu sou tão especial, que vou investir em mim”. Isso é diametralmente oposto àquilo que é suposto.
JFE: Li uma frase há uns tempos que dizia ‘Não adianta nada fazeres yoga, se não deres bom dia ao porteiro’…
AM: Pronto, é isso mesmo, não é? E há mesmo vários psicólogos que dizem que “Crescimento Pessoal é nós sabermos olhar para dentro, e depois sabermos olhar para fora”. Só olhar para dentro, não chega. Tem de ter repercussões fora.
JFE: Amar é uma qualidade intrínseca a todos os médicos?
AM: Não tem a ver com a profissão. Tem a ver com o que se é. Há muita gente que ama sem precisar de ser médico e há muitos médicos que não sabem o que é amar. Infelizmente, estamos a perder muito essa capacidade, de darmos alguma coisa do melhor de nós próprios. E não é exclusiva dos médicos. Tenho muitos colegas que, se calhar, era melhor que não exercessem… Como há muita gente que não é ligada à Saúde, e fazem bem a tanta gente.
JFE: A Empatia devia ser ensinada e trabalhada a nível académico?
AM: Sem dúvida. Na Faculdade de Medicina fala-se em incluir uma cadeira de Poesia… Acho muito bem, conseguirem ter algum grau de abstração e de sentimento, mas lá está: isso também não se ensina; e não é a pôr cadeiras nos cursos, ainda que o princípio revele o reconhecimento de um problema grave a esse nível; e que é um problema transversal à sociedade, em geral, que é esta tendência crescente e gravíssima, de cada um olhar cada vez mais para si e por si, e não pelos outros. E a falta de convívio crescente, especialmente do contacto com a família e a transmissão de princípios, não tem ajudado. Assusta-me ver que tantos pais achem que pelo facto de os filhos andarem em boas escolas, o assunto da educação está resolvido. E olhando para trás, tenho recordações espantosas dos meus avós, de me levarem a passear, de me ensinarem literatura, de me levarem a museus; e dos meus pais a fazerem isso, também. Tudo isso me foi essencial. Não vejo as pessoas a terem tempo, nos nossos dias, para dedicarem a isso. E esse convívio com as pessoas que nos são fundamentais, é tão importante. As ligações familiares são cada vez mais débeis e não são estimuladas. Em vez disso, é estimulada a competição, o sucesso, o dinheiro… Até a noção do ‘bom nome’ e de ‘palavra’ se perdeu.
JFE: A grande pandemia deste século, é o COVID-19?
AM: Não. É a indiferença.
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Caso tenha um familiar, amigo ou vizinho com histórias e memórias para partilhar nas entrevistas “Aqui na Estrela”, indique-nos, enviando um email para geral@jf-estrela.pt com os contactos e a razão pela qual o devemos contactar.
A Comunidade é a maior riqueza da Freguesia de Estrela. É bom viver na Estrela!